ladob.bento@gmail.com

18 novembro 2014

dois ou três passos na abissínia

imóvel. tudo que aqui circunda padece de silêncio e imobilidade. mas não são cousas aleijadas de movimentos, nem privadas de vida. pelo contrário: se tão vivazes, se tão e quanto mais lépidas, velozes, atrozes. se ágeis, sim forasteiras. o gato, consegui dele plasmar o salto. e aquele gato, que olhava, onde via, me atrevi a ver também. do pulo. não, não saltei. recolhi a hora que sua pata era um vôo - aquele então, aquele bálsamo, aquele alto. antes de pouso. o vento. da boca se calando, arrependida de chamar um nome.

penso neste lugar, uma varanda, uma pérgula, um caixote, balão de gás - cesto de vime, três pessoas dentro: lenços alvos em prumo. o céu nunca foi tão azul. nem o sol tão árduo. nem a vida, tão breve. e o gato, o gato. o gato um pássaro.

imóvel. minha mesa nunca foi tão alada. a criatura assim, outra vez aquele adágio. a beira, a varanda. o deserto -- tomei a liberdade de buscar dos pássaros o chilrear inteiro e do gato, não o miado. dos gatos de relap~]ao o bigode me cingindo a perta - que nem bisturi, que em linha costurando a barra do vestido, o punho da camisa.

tudo que agora circunda, me circunda. é o baile, é a janela. é a noite já em casa quando se caminha de meias para não fazer barulho. e quando se deita, no escuro, um pulo. como se um gato caísse na coberta. mas não é o gato. é o deserto amarelo, cadente. quem se aderrama, três da tarde, quente. igual ao ronronar de um gato. que ligeiro, faceiro, se aninha no meio dos pés. como se fosse uma varanda. e abrisse - festeiro, confiável, amigo. uma tarde através da abissínia. duas janelas abertas, duas casas esbaforidas. chaleira, chalaça,chamego.

a areia - aquela não cobriu o vinhedo, aquela de canto que não serviu para nada: viu as lantejoulas, viu o burburinho. Cinco da manhã. e o deserto é o deserto. Os gatos, os gatos uivam na vleha e concida madrugada.

 

04 junho 2013

Mercedes Lorenzo


© Mercedes Lorenzo. Todos os direitos reservados


Vocábulo - Sintaxe e morfologia de uma obra


Na parte de baixo um ligeiro sfumato e na zona intermediária o tratamento realístico; no plano superior, dramáticos negros em dois extremos. Costura a cena cálidos terrosos. Mas o que está em evidência, a queimar os olhos, são os brancos explodidos -- reforçando o argumento (na música a isto se dá o nome de tema). Pois bem, ali estão as peças de vestuário, o casario e a cerca indicativa de caminho. Por esta via, os elementos tratados da mesma forma, leva a crer que a artista tenha querido aí criar um só vocábulo - ou deles fazer um anagrama. Imagino que anagrama, porque ela não cairia na obviedade duma construção imediata e dedutível - e portanto, vulgar. Corriqueira, sim, vulgar, jamais. E o corriqueiro,  o fugaz é o mais inapreensível dos instantes.

Mas juntando os elementos da construção técnica do retrato, do pormenor ao todo, é que se consegue compreender que o motivo é o que 'menos' importa . Partindo do bucólico é que se encontra o motivo não da fotografia per-si. Porque não se vê uma foto. Na verdade é como se se estivesse a ler um livro. E é quando a fotografia menos se assemelha a fotografia, é quando mais se é fotografia (a citação não é minha). E dizem ainda que o melhor de um livro não são suas linhas e nem mesmo seu texto, mas aquilo que se pode (quando se pode) depreender. Neste sentido, aqui está um grande exemplo de literatura. Literatura quando muito bem apreendida e, raramente se deixada fotografar.

Mas, expandindo um pouco mais o repertório, quem quiser ainda, pode fazer mais uma conexão. Mas para isso é preciso aguçar os ouvidos. Sim, estou falando da música dodecafônica. Portanto, de dissonâncias. E as dissonâncias -- é bastante sabido por todos -- só encontra seu paralelo (os puristas hão de me atirar pedras) naquilo que reverbera. Ou seja...

Agora, agora vamos falar da parte não-técnica. Bem, bem, agora é a vez de ir para os entremeios. Cada um por si. Como dito acima, o bom do texto é aquela parte que cada um faz sua própria leitura. Qual página, estamos, mesmo?

// - O cavalo? Não, não é um cavalo. Um cíclope, um unicórnio? Em casa, assiste-se a um programa de tevê. Ensina receitas de bolo. Na oficina, alguém solda o lampião que se quebrou. Abaixo das urzes, um riacho. Corre, rio acima, notícias numa balsa... As roupas lavadas quaram. Quando retornar, no índigo estará o cheiro de sabão, de limpeza e de cuidado. Ainda bem que fez sol o dia todo. Ainda bem que não choveu... Quando você chegar, tudo estará em ordem. Como sempre esteve e como sempre estará.

30 dezembro 2012

Tempo e Natividade


(Crônica do Natal de 1996)

A mais hedionda das aparições:
Marimbondos, rãs, sapos e algumas lontras. Também lesmas
escorregando na mesa preparada para o jantar.


A noite fatídica das queimas de velas
A dor dos sinos açoitados na carcaça fria de aço
O cheiro desolado partindo dos bueiros.


Uma noite de natal na casa sem datas,
No sobrado de poucas luzes e quase sem janelas
sem marquises e sem calhas.


A ante-sala onde as almas esperam a ceia
reclinadas no espaldar puído das cadeiras
ou andando nervosas de lá para cá.


E passos rangendo nos degraus:
É a Ausência quem chega usando roupa de gala
com seu vestido de brocado, guizos e cetim.


Tocaram oboés quando as almas se sentaram
E todas esconderam as faces em choro enquanto,
vagarosamente, estendiam guardanapos negros sobre o colo.


A Ausência era uma espécie de vulto encarquilhado,
de pele rugosa envelhecida pelo esmalte da eternidade;
Reinava absoluta no casario onde os inquilinos jamais podiam se amotinar.


O estupor das fazendas, as articulações com bursite
E a catequese tentando imputar aos sentidos a nulidade dos vínculos de afeto,
todo passo sobre a ponte, todo elo transcendente.


Escolha sua malta, sua caserna e o desejo puro.
Embrenhe-se nos orifícios intra-moleculares,
A ortodoxia das estruturas dura pouco: Sistêmico porvir.


O teorema não tem brilho; de veios se reveste o espírito
e de mudas inevitáveis em desespero apodrece – Crava,
crava uma guirlanda em tua porta.


Como dois ventrículos, também dois mundos.
Duas ceias, duas cabeceiras, dois escuros.
Duas mãos sobrepostas, dois olhares.
 Dois silêncios, duas dores: duas noites desconjuntadas de natal.

____

Do meu livro Silêncio Suspiro Saudade (Inédito)
Registrado na Biblioteca Nacional do Brasil N 279.089
 

21 novembro 2011

Aves

Ali de tocaia, sem um pio
tão mudas como ladrões em cima do muro
prontos prá pular no quintal

sem quebrar um graveto
com um pé esmagando a hortaliça - um croc apenas -
e o outro suspenso no ar para não fazer barulho

Tem capuz preto e a cara pintada de carvão
Tem as mãos grandes como dessas iguais de fazer carícias
em vão.

Já encosta o nariz na janela
Fazendo um baço no vidro com o respiro quente
Desses de hálito quando alguém se beija

Nenhum pio na árvore. Nenhuma asa fora do ninho.
E o ladrão ainda não arrumou coragem para entrar
A compota de abacaxi vai curtindo na prateleira da cozinha

Escuto uma luz que baixa, são os retalhos
do livro se fechando
Ou o bafo quente que na janela evaporou.

Desistiu o ladrão de entrar em casa. Nada carregou
Mas deixou suas luvas enormes caídas no quintal
e quando encontrei, olhei para a janela

- A mancha tinha mesmo evaporado
Ficou um negócio parecido com beijo, não beijo de verdade.
Mas barulho de beijo igual a aves que dormem sem um pio.

17 novembro 2011

Feliz Aniversário

Feliz aniversário. Mas não, não vá apagar a vela
Não vá. Não sopre. Não arreganhe a porta
feche a cordilheira

corra direto prá rede, debaixo da mesa o bolo de glacê
derretido
Não sopre, não chamusque os dedos

Não bata palmas, não suba na mesa
Não cuspa nos doces - lamba os dedos
por debaixo da unha

a pele tem segredo
não bata palmas ainda
falta meia hora

não se sacuda no escuro
não tenha medo
Apaguem a vela:

-Já podem cerrar o caixão

12 outubro 2011

Ofício

que nem ponte. que nem duas margem. êta ofício danado esse sem domingo nem feriado nem hora de almoço. todo dia é dia ingual sem divisa. num tem calendário nem dia santo. sinhô, é só um desassossego, uma vontade de tá agora cus amigo, vontade que dão na gente...

dessas assim de gaiola triste, dessa jaula de arame que acorrenta bem-te-vi e que sonha ser uma vesguinha de céu. dessas de pranta que aparece na calçada e suspira cum pedaço de chão

um arado de mariasemvergonha
um riacho no grotão

pois é, né tristeza não, seu moço. é coisa quieta mesmo. dessas quietude como nois fica quieto depois que come doce de leite e fica parado na janela só zoiando o céu e os povo que passa. sem pressa e suviano uas cantiga de trovão. êta ofício danado de bom esse, 'ofício de existir'.

07 outubro 2011

Voz fumegante

Canteiro escalavrado
Antúrios
Quando os barcos naufragam
E as pedras levitam depois de atiradas
nas vidraças -
halo quente

Sangram as gengivas
dorida pinça escaldante
sem eco
Pura pontada de agulha
Seca
Quente
Silente

A pedra sangrando a boca
Barca turva caindo
ventre adentro

Feito navalhas, os dedos
riscam a face
como aviões em fumaças
alvas
também ecoam

Retumbante céu azul
De limpas praias
caiadas
Marquises de veraneio
Cadeiras no ermo ajuntadas

A grinalda das saúvas
Os ecos que cessam.
Já, agora, os canteiros espatifados
emudecem.
Como as pedras que cobrem a face
Como os barcos que afundados
murmuram suas viagens

E no baço se entrelaçam.

04 outubro 2011

Das lonjura

Quando morava longe, tudo era aqui do lado, tudo me encostava nos zoio.
Tudo bulia e tudo respirava.

Mas então, agora que cheguei, tudo se mudou.
E as lonjura se afizeram. E tratei de arrumar uns oio grande, desses que só enxergam de manhãzinha... quando é claro e o sereno não me tapa as vista.

É só assim, é só assim que no meio dos mato, nas urtiga - É nessa geladeza de bruma que meus braços se quietam, dessas quieteza de nem acordar passarinho...

É nessas coisa assim, parada e fria que meus oio te acham. E o nome disso é aqui pertinho.
Parecido de ponte, dessas que leva nóis daqui até onde tu tá.

30 agosto 2011

Barcas

Um
barco, barco de vapor
Uma
casa, fogão lenheiro

A mesma coisa
ao invés de mar
outras coisas úmidas
molhadas

Não na cumeeira
nem no casco
no rodapé
nem no quintal

A mangueira aberta
Sobre o mar digo
em cima da casa
Umas ondas

De puro vento
digo de
pura miragem
como se fosse de lembrança

que embota os olhos
e embala os braços
feito barco
feito berço

11 agosto 2011

Eternidade

Eterno não é aquilo que não tem fim e nem se prende aos ciclos do tempo.
Eternidade nada tem a ver com começos, meios, horas, brevidades.
Eternidade não está ligada ao devir, que é um nome pomposo para aquilo que corre.
Eternidade, mesmo, é uma coisinha bem simples. E se parece com a voz da minha
mãe dizendo: Abre a torneira, filho, vamos molhar as plantas. Tá na hora das
samambaias beberem água.

Isto sim, conheço de eternidade. E não preciso de nenhum outro nome.

20 março 2011

Cisnes - Um Requiem

Já entre os intervalos
Ou justamente nestes
Quando os preâmbulos ficam dolentes
Na escuma das folhas
A sombra despeja uma nódoa no gorjeio
Trinam ecos
Repercutem
Estertam
E finalmente se calam

É inaugurado sem pompa nem circunstância
O ato final: silêncio profundo
Das asas tamborilando o chão
- de gravetos tortos, de ramos rotos.
Até os regatos se calam; as cotovias viram as faces condoídas
E inclusive as formigas cessam sua procissão.
Deitam os cisnes, exustos, no travesseiro de bruma
E a noite, a noite invade o que já deveria ser dia
Para lhes render uma última homenagem.

Carrega atado nos dedos
Uns guizos sem barulho
Uma espécie de guirlanda faiscante
E feito corola a depõe cerimoniosamente ao lado.
Vai-se a noite caminhando ressabiada
E já longe, ao virar-se,
Estala qualquer coisa parecida
A um relâmpago, uma claridade. Faz nascer no último breu
Uma constelação de astros ululantes.

Raia o dia - Que no primeiro bocejo
Abre os olhos escandalizados de horror: Cairam os cisnes alvos!
E ao lhes render prece, entrega um azul transparente
Faz um zênite assafirado como nunca antes na mata se viu.
Chama nuvens, e estas recobrem a paisagem imitando gansos, falanges inteiras de pássaros
E os pássaros do mundo inteiro chegam também
Com tanta fleuma, com tanta cerimônia
Que fazem um tufão, um redemoinho, um levante de universos aéreos.
Então o mundo e os cisnes vão viver noutro lugar.

06 março 2011

Pedrisco


(Para Tia Eda, grande amiga da minha mãe. Que me viu crescer e por quem tenho infinito amor)

E ele tinha nos olhos
uma chuvarada
chuva grande

Não dessas de derrubar barranco
de cobrir gente
molhar a rua

Ele tinha uma chuvarinha
dessas que nem amassa roseira
nem pende beija-flor

Duma dessas tão fina assim mas tão fininha
que quando cai já se vai embora
so larga no rosto um estalo de beijo beijado

como a mulher que vai andando sozinha
de roupa branca, encardida
pra perto do rio

Dessas chuvarinhas que tem prá lá de Jacobina
Prá lá de Manaus e de Belém
cinco da tarde

Na hora que a roupa tá quarando no quintal
e quando cai, cai fazendo um gemido
um gemido de quem diz - me sufoca

uma chuvarinha dessas que flor gosta
que samambaia chama
no alpendre, na memória, no silêncio eterno.

25 fevereiro 2011

Conversa

- Oh Deus, tem pena de mim...
- O que você quer, meu filho?
- Um cartão black
- Pra que? Vai na Jaguar?
- Não, quero ir no Ceagesp comprar antúrios...

19 fevereiro 2011

Transfiguração

Entre estes esteios da chuva e do prumo
quando as gotas fazem pios no espinho
caindo nas rosas suas mortalhas

uma gruta esconde
o lampejo noturno da madrugada
madrugada dormente não de noite

Nenhum escuro na pele eriçada
É agora um tanto de aurora
No regato macio, indelével

- onde corre o mar. E invento janelas
cortinas, searas.
E paira algum calor

Onde eu mesmo invento intentos
de rostos -
dou-te face imaginada

Este é o lugar
onde os pássaros, feito gentes, calam-se aturdidos
Num dizer de clamores

Caídos como anjos bêbados na madrugada
Junto a moça que incinera asas no quintal:
um quintal de aves morridas

Meu regato ainda alvo, ainda alvo de lembranças
puídas, assim dorme
estirado na meia-luz

lilás, um fiambre, um dormente,
da porta que não se aguenta impaciente
e então eu mesmo abro:

que entrem as miragens
da madrugada
transfigurada

do ente que cruzou a esquina
e se foi
- na gota -

molhada de rosas enxangues.

Foi um catabrum

catabrum... catabrum

muito alto de relâmpago relampiando
na beira d'água como dois barcos
no telhado nas ondas

Fez-se a tarde uma peia de arroios dormentes
de saraivadas e de sol deixando
uivos na escada

catabrum no meio dos becos
para doralice andar ofegante
correndo para o amante

catabrum que acordou-se a tarde preguiçosa
carregando na saia uns pliçados de ondas molhadas
e olhos disjuntos

feito arreios de beijos
beijados por dora
lice

na esquina de esguelha
da janela
fruteira madura de gomos fartos - tantos

pomos parecidos com os beijos
que ela
doralice mesma se assustou

no catabrum do barulho
beijando o moço que descia da barcaça
catabrum nos olhos enevoados de graça

catabrum, catabrum fez o homem um estrondo
nos cabelos dela quando virando a esquina
na boca alva lhe perpetrava um sorriso.

17 janeiro 2011

Um cemitério de pássaros

(Para Ligia Guedes)

interessa no mundo?
da valia dos escombros
Senão em risos opacos, vozes disjuntas

Interessa qualquer coisa transmutada
Dito nomes, feito símbolos

Interessa qualquer coisa assim
Feito aceno breve, sorrateiro
Reluzente de esgar

De bruma partida nos olhos contritos -
debruados numa valsa, numa dúvida
vago esgar de peito caindo, caindo

Noite ida, noite ida
Dei prá acalentar a escuridão
como se fosse um pedaço de beijo

Ou um tombo de mariposa no abismo
Na vidraça
Na vidraça um pardal

Enxangue
retalhada voz sentida
aquietada, estática

era para ser uma janela

No degrau do quintal
quando amanhece e o dia
se faz claro sobre as asas deixadas

vazias
perdidas
como os acenos perdidos - e onde as asas eram quase asas de voar .

23 dezembro 2010

A Árvore de Natal na Casa de Cristo

(Dostoievski)

Havia num porão uma criança, um garotinho de seis anos de idade, ou menos ainda. Esse garotinho despertou certa manhã no porão úmido e frio. Tiritava, envolto nos seus pobres andrajos. Seu hálito formava, ao se exalar, uma espécie de vapor branco, e ele, sentado num canto, em cima de um baú, por desfatio, ocupava-se em soprar esse vapor da boca, pelo prazer de vê-lo evolar-se. Mas bem que gostaria de comer alguma coisa. Diversas vezes, pela manhã, tinha se aproximado do catre, onde num colchão de palha, chato como um pastelão, com um saco sob a cabeça, a guisa de almofada, jazia a mãe enferma. Como se encontrava ela nesse lugar? Provavelmente tinha vindo de outra cidade e tinha caído enferma. A patroa que alugava o porão tinha sido presa na antevéspera pela polícia; os locatários tinhas se dispersado para se aproveitarem também da festa, e o único tapeceiro que tinha ficado, cozinhava a bebedeira há dois dias: esse nem tinha esperado pela festa. No outro canto do quarto gemia uma velha octogenária, reumática, que outrora tinha sido babá e que morria agora sozinha, soltando queixas e imprecações contra o garoto, de maneira que ele tinha medo de se aproximar da velha.

No corredor ele tinha encontrado alguma coisa para beber, mas nem a menor migalha para comer, e mais de dez vezes tinha ido para junto da mãe para despertá-la. Por fim, a obscuridade lhe causou uma espécie de angústia: há muito tempo tinha anoitecido e ninguém tinha acendido o fogo. Tendo apalpado o rosto de sua mãe, admirou-se muito: ela não se mexia mais e estava tão fria como as paredes. "faz muito frio aqui", refletia ele, com a mão pousada inconscientemente no ombro da morta; depois, ao cabo de um instante, soprou os dedos para esquentá-los; pegou o seu gorrinho abandonado no leito e, sem fazer ruído, saiu do cômodo, tateando. Por sua vontade, teria saído mais cedo, se não tivesse medo de encontrar, no alto da escada, um canzarrão que latira o dia todo, nas soleiras das casas vizinhas. Mas o cão não se encontrava ali, e o menino já ganhava a rua.

Senhor! que grande cidade! Nunca tinha visto nada parecido! De lá, de onde vinha, era tão negra a noite! Uma única lanterna para iluminar toda rua. As casinhas de madeira são baixas e fechadas por trás dos postigos. Desde o cair da noite não se encontra mais ninguém fora, todos permanecem enfurnados em casa, e só os cães, as centenas e aos milhares, uivam, latem durante a noite. Mas, em compensação, lá era tão quente; davam-lhe de comer ... ao passo que ali. meu Deus! Se ao menos ele tivesse alguma coisa para comer! E que desordem, que grande algazarra ali, que claridade, quanta gente, cavalos, carruagens... e o frio! Ah este frio!

O nevoeiro gela em filamentos nas ventas dos cavalos que galopam através da neve gelada o ferro dos cavalos tine contra a calçada. Todos se apressa e se acotovelam, e, meu deus! como gostaria de comer qualquer coisa, e como de repente seus dedinhos lhe doem! Um agente da polícia passa ao lado da criança e se vira, para fingir que não vê.

Eis uma rua ainda: como é larga! Esmagá-lo-ão ali, seguramente. Como todo mundo grita, vai, vem e corre, e como está claro, como é claro! Que é aquilo ali? Ah, uma grande vidraça, e atrás dessa grande vidraça um quarto, com uma árvore que sobe até o teto; é um pinheiro, uma árvore de Natal onde há muitas luzes, muitos objetos pequenos, frutas douradas, e em torno bonecas e cavalinhos. No quarto há crianças que correm - estão bem vestidas e muito limpas:
riem e brincam, comem e bebem alguma coisa. Eis ali uma menina que se pôs a dançar com um rapazinho. Que bonita menina!

Ouve-se música através da vidraça. A criança olha, surpresa; logo sorri enquanto os dedos dos seus pobres pezinhos doem e os das mãos se tornam tão roxos que não podem nem se dobrar nem mesmo se mover. De repente o menino se lembrou que seus dedos doem muito; põe-se a chorar, corre para mais longe, e eis que, através de uma vidraça, avista ainda um quarto, e neste outra árvore, mas sobre as mesas há bolos de todas as qualidades; bolos de amêndoas, vermelhos, amarelos - e eis sentadas quatro formosas damas que distribuem bolos a todos os que se apresentam. A cada instante a porta se abre para um senhor que entra.

Na ponta dos pés, o menino se aproximou, abriu a porta e bruscamente entrou. Hu!! com que gritos e gestos o repeliram! Uma senhora se aproximou logo, meteu-lhe furtivamente uma moeda na mão, abrindo-lhe ela mesma a porta da rua. Como ele teve medo! Mas a moeda rolou pelos degraus com um tilintar sonoro: ele não tinha podido fechar os dedinhos para segurá-la.

O menino apertou o passo para ir mais longe - nem ele mesmo sabia para onde. Tem vontade de chorar, mas dessa vez tem medo e corre. Corre soprando os dedos. Uma angústia o domina, por se sentir tão só e abndonado, quando, de repente: Senhor! Que poderá ser ainda? Uma multidão que se detém, que olha em curiosidade. Em uma janela, através da vidraça, há três grandes bonecos vestidos com roupas vermelhas e verdes que parecem vivos! Um velho sentado parece tocar violino, dois outros parecem tocar delicadas canções, olhando-se mutuamente enquanto seus lábios se mexem. Falam, devem falar - de verdade - E se não ouve nada, deve ser por conta da vidraça.

O menino julgou, a princípio, que eram pessoas vivas, e quando finalmente compreendeu que eram bonecos, pôs-se de súbito a rir: Nunca tinha visto bonecos assim, nem mesmo suspeitava que existissem! Certamente, desejaria chorar, mas era tão cômico, tão engraçado ver esses bonecos! De repente pareceu-lhe que alguém o puxava por trás. Um moleque grande, malvado, que estava ao lado dele, deu-lhe de repente um tapa na cabeça, derrubou o seu gorrinho, deu-lhe uma rasteira.

O menino rolou pelo chão, algumas pessoas se puseram a gritar. Aterrorizado, ele se levantou para fugir depressa e correu com quantas pernas tinha, sem saber para onde. Atravessou o portão de uma cocheira, penetrou num pátio e sentou-se atrás de um monte de lenha. "Aqui, pelo menos", refletiu ele, "não me acharão: está muito escuro".

Sentou-se e encolheu-se sem poder retomar o fôlego, de tanto medo, e bruscamente, pois foi muito rápido, sentiu um grande bem-estar. As mãos e os pés tinham deixado de doer, e sentia calor, muito calor como ao pé de uma estufa. Subitamente se mexeu: um pouco mais e ia dormir! Como seria bom dormir nesse lugar! "Mais um instante e irei ver outra vez os bonecos", pensou o menino, que sorriu a sua lembrança. "Podia jurar que eram vivos"... E de repente pareceu-lhe que sua mãe lhe cantava uma canção. "Mamãe, vou dormir; ah como é bom dormir aqui!"

-Venha comigo, venha ver a árvore de Natal, meu menino - Murmurou repentinamente uma voz cheia de doçura.

Ele ainda pensava que era a mãe, mas não, não era ela. Quem então acabava de chamá-lo? Não vê quem, mas alguém está inclinado sobre ele e o abraça no escuro, estende-lhe os braços e ... logo... Que claridade! A maravilhosa árvore de Natal. E agora não é um pinheiro; nunca tinha visto árvores semelhantes! Onde se encontra então nesse momento? Tudo brilha, tudo resplandesce, e em torno, por toda parte, bonecos - mas não são meninos e meninas, só que muito luminosos! Todos o cercam como nas brincadeiras de roda, abraçam-no em seu vôo, tocam-no, levam-no com eles e ele mesmo voa e vê: distingue sua mãe e lhe sorri com ar feliz.

-Mamãe. Mamãe. Como é bom aqui, mamãe! - exclama a criança. De novo abraça seus companheiros e gostaria de lhes contar bem depressa a história dos bonecos da vidraça... Quem são vocês, então, menino? E vocês, meninas, quem são? - pegunta ele, sorrindo-lhes e mandando-lhes beijos.

- Isto... É a árvore de Natal de Cristo -respondem-lhe - Todos os anos, neste dia, há, na casa de Cristo, uma árvore de Natal para os meninos que não tiveram sua árvore na Terra...

E soube assim que todos aqueles meninos e meninas tinham sido outrora crianças como ele, mas alguns tinham morrido, gelados nos cestos, onde tinham sido abandonados nos degraus das escadas dos pal[ácios de S. Petesburgo; outros tinham morrido junto as amas em algum dispensário finlandês. Uns sobre o seio exaurido de suas mães, no tempo em que grassava, cruel, a fome de Samara; outros, ainda, sufocados pelo ar metífico de um vagão de terceira classe. Mas todos estão ali nesse momento, todos são agora como anjos, todos juntos a Cristo, e Ele, no meio das crianças, estende as mãos para abençoá-las e as pobres mães... E as mães dessas crianças estão ali, todas, num lugar separado, e choram; cada uma reconhece seu filhinho ou filhinha que acorrem voando para elas, abraçam-nas e com suas mãozinhas enxugam-lhes as lágrimas, recomendando-lhes que não chorem mais, que eles estão muito bem ali...

E nesse lugar, pela manhã, os porteiros descobriram o cadaverzinho de uma criança gelada junto de um monte de lenha. Procurou-se a mãe... estava morta um pouco adiante; os dois se encontram no céu, junto ao bom Deus.

29 novembro 2010

A Estrela

(Ferreira Gullar)

Gatinho, meu amigo,
Fazes idéia do que seja uma estrela?

Dizem que todo este nosso imenso planeta
coberto de oceanos e montanhas
é menos que um grão de poeira
se comparado a uma delas

Estrelas são explosões nucleares em cadeia
numa sucessão que dura bilhões de anos

O mesmo que a eternidade

Não obstante, Gatinho, confesso
que pouco me importa
quanto dura uma estrela

Importa-me quanto duras tu,
querido amigo,
e esses olhos teus esverdeados
com que me fitas.

28 novembro 2010

Uma Questão...

Dizem os cientistas que a espécie humana está
no topo da cadeia evolutiva pelo uso da Razão.

Eu, que vim ao mundo destituído desta faculdade,
em qual patamar estarei, se meu verbo é amar?

20 novembro 2010

Música, doce música

Depois das lonjuras, voltar para Casa - Habitar-se novamente

E como quem regressa ao lar, abrir as janelas e descortiná-las; hora de abrir os armários, de desempoeirar os móveis. De reunir no quintal as louças para lavar no tanque.

Quarar roupas no gramado, ligar novamente o rádio - cantarolar músicas novas.

Retirar dos caixotes as coisas velhas. No silêncio redimir-se do que se quebrou, apiedar-se com
os cacos mas não insistir em uni-los: Conviver com as trincas e as rachaduras - que o tempo trate de uni-las. Ou então que as sopre vagarosamente.

E há o instante do perdão, anuir com os pés que calcaram alguns ramos despedaçando talos verdes. Semear canteiros. Parir outros frutos

Deixar partir os retratos imóveis, os afetos longínquos:
Que existam sem assombros - Assim existirão para sempre na fagulha
cintilante da memória.

Casa, doce casa de um existir
Cá estão reunidos os despojos - Rente aos desvãos
alçar asas
suspiro andante
peregrino
de rosto firme

Alevantando amizades partidas
Acenando risos quietos
de alguma coisa feito paz
serena e morna
que chega e fica:

Não como dia escaldante
Mas de meia-sombra quando
descalçados, os pés tocam o chão
e se deixam ali ficar
por mais um minutinho ainda.

30 outubro 2010

Hábitos estranhos

do campo amarelo - centeio feno chamusco

inexplicável ardor

Era ele uma criatura

aturdido sol fazendo

nos campos um fogo / queima

o peito a pele

do campo negro - feixe terroso

de joelhos

logos rendilhados, copas verdes

contra o volume opaco

de céu

naufragaram as barcas

e os arrecifes gemendo

velas viúvas

bolhas salgadas de mar contra

o céu roxo As ondas

As ondas e a praia.

27 outubro 2010

não coleciona ossos
nem dedos nem falanges
nem mesmo

abraços

não atravessa o quintal
mas se perde neste beiral de
passos molhados

abraçado

na cripta do rosto duro
gelado país bebido
na bondade

escura mão distante
escura mão sombria
que

quando afaga afaga e
arranca da carícia gemido
escuro do sangue

que beija um estalo
acre
como janela recebendo no vidro uma pedrada

e manchando a cortina
derrubando almofadas
no chão brilhante do assoalho. do assoalho vermelho

vermelho acre gelado
Pega o inventário dos cílios longos
purgados no vermelho do chão

do chão
dois ou três fragmentos
de mar
quebrado na gota
lúcida

é o rincão conhecido
entre eixos claudicantes
da areia que soterra o pé
na caminhada da aurora.

raseia assim o pólen da terra - um gemido
um estertor
um guizo d'água fugida
uma gota assim de gota mesmo escorrida

como se o mundo fosse tanto - do mundo
grande areia vazia
praia on-
de
conchas emborcadas emborcadas vivem.

12 outubro 2010

Madrugada

(T.M.H.R.)

Faz frio

Nesta parte do mundo
onde o silêncio realmente tem beiços roxos
e mãos cor de cardumes vermelhos.

Faz frio na desolação destas praias escumosas
E na âncora da corda pendurada
- Uma salva um vento inquieto

que não sei se geme
que não sei se clama
ou se ele mesmo me pergunta.

Faz frio neste lugar gelado
Um anteparo, um solstício
um rincão.

Friorenta, as ramas encolhidas já choram
no grotão cirurgico do asfalto branco
Do avental translúcido

Médico salvador que traz
ao invés do soro úmido
Meus bichos de celofane e pelúcia azuis

Como sois estrábicos
de costume, de valsas
carquejam

Na corda, no pêndulo mudo
Ainda o riso novo em
Sinal dos dias:

Vem ele, a criança pura me tocando
com as mãos sem saber
Arranjcando do pescoço o véu mortal.

Agora nuvens
Agora o riso dele
Amanhecendo

Através da vidraça
o dia fez luz
e pelo dia, uma voz manteve do dia sua luz

baça
no torpor de um abraço
de calor quenmte - Que o frio espantou.

26 setembro 2010

Maria, Eustáquio e Filó

M - O céu hoje está mais azul que de costume.

E - E o mar então... duma calma!

F - Já sei Maria, você é cega e enxerga com a alma. Mas e tu, Eustáquio, se é surdo de nascença, vai me dizer que escuta o mar pelo coração?

E - Claro que não Filó. Eu ouço mesmo é pelos olhos.

Os três deram as mãos e seguiram em caminhada. Ah, embora Filó não tivesse pernas, mesmo assim ela flutuava.



(Para Alexandre Kovacks e aos amigos do Mundo de K - www.mundodek.blogspot.com)

21 setembro 2010

...

Amigo do vento
quando entra em casa
e solapa a janela
sacudindo o vaso em frô

Amigo do vento
que beija o retrato
e passa no rosto uma beiradinha
de cheiro outro

Vem recordando aqui um quintalzinho
Vem pedaço de escuma branca
Vem pedaço de noitinha

No trote maneja a voz ainda
berloque berloque berloque
ponteia o mar ponteia onda ponteia onda

Riacho do vento
Lá na serra o mato corre
Lá no céu o vento esconde

Minha caixa de segredos
do vento - escondido vento
com umas fitas roxinhas

Sítio, pé de maracujá
fonte pura
amanheceu.

28 agosto 2010

Vastidão

Não é exatamente um lugar
Talvez seja mais próprio dizer que seja um estado
Uma intermitência
de fagulhas
de gotas frescas

Quando a planta dos pés toca suavemente
a grama verde
E os olhos se perdem nas distâncias
imaginadas
E por que não dizer, vividas?

Traz neste ribombar pulsante
Epopéias comuns de falas ordinárias
E cheiros estonteantes na leva da tarde
inteira:
O calor sobe e faz mormaço - Evaporando tudo em volta.

Esta é a morada que assovia
Num lugar plainando em céu de sentidos azuis.
Alguns dão o nome de quietude
Outros a chamam de silêncio.
Eu que nada sei, só me deixo, por ela, encantar.

26 agosto 2010

Madrugada silenciosa

Adentro

Saio para andar com meu cão
No meio da noite
- que não é escura
E que me veste
Numa casaca repleta de contas brilhosas;

Tenho vozes repercutindo nos ouvidos
E sequer diferencio
O que é música
Chamado
Ou despedida.

Tenho acenos esvoaçando
que me atravessa a alma
Feito dedos
Ou talvez asas
Entre suspiros beirando longe.

Tenho a noite me carcomendo as entranhas
Feito estrelas pontiagudas
De samambaias roucas.
Tenho olhos contritos
Feito lembranças ocas.

17 agosto 2010

Do vivido

Ainda longe
Mesmo baça
Mesmo fria

A luz clareia
Mesmo gelando o rosto
Mesmo trincando os dedos

Ainda tarde
Lenta
Vagueante

Atravessa o alpendre
Roça os pés
Sobe aos olhos

A trazer caminhadas tardias
Canteiros antigos
Coisas boas de lembrar.

03 agosto 2010

Gesto Branco

Talvez fosse alguma coisa parecida a bruma
- num espouco
diminuto
silente
vagaroso

Ali, onde os olhos guardam as últimas imagens
Antes delas arrefecerem
Trancam-se escondidas na costura das cortinas rente ao chão
- o sopé duma colina
o assoalho alto da nuvem encardida.

Talvez fosse algo semelhante a poeira
um grão incrustado na pálpebra vermelha
chorosa
partida
acenante.

Ali, onde a voz já esconde sua palavra
oca
murmurante
sibilosa
esvaziada.

.........

Ela teria entrado com os pés n'água
E umas ondas em volta lhe vieram encontrar
Entre beijos e trinados
o próprio céu se refletiu na saia branda
com seus guizos festejando a presença

.........

Talvez fosse qualquer coisa parecida a despedida
que guardasse um eco de soslaio
ou um gesto na face gelando
caída na areia
feito gota ressecando.

20 julho 2010

Do silêncio

Muito já choveu
De relampiar no escuro
Claro lume
Devagarinho
Cintila no breu.

15 julho 2010

Relicário

Perdi a bicicleta. E perdi as sendas também
E junto a elas, as paisagens:
crespadas, obtusas - doces

Perdi o rosto da minha mãe.
Hoje é um arrepio que vagueia no mar
ou num vento na rua deserta.

Perdi, dela, a voz
E o eco, ah como é pobre
marulho, ventuinha, uma asa

Perdi minha casa e os móveis ficaram ali
Exilados ao sopé do cadafalso
Quase mártires

Sem bandeirolas sem fogos espoucantes
Murchos na neblina
Pestilentos como carrapatos na sarjeta.

Perdi sonhos e perdi miragens. E tudo mais
que guardei como tesouros - o novelo de linha, a caixa de costura;
os retalhos da manta de lã.

A esquadra afundou com meus tesouros de plástico.
O mar fundo era só esta concha de mão
onde, a rebouque, trazia pedacinhos de papel.

Vozes - Suspiros

Estas flores não servem para nada
Mas flor tem serventia?
Tem. Tem sim
Mesmo esturricadas me lembram qualquer coisa

Só se for caixão fechado.
Não diga isso eu te imploro
E também uma rendinha vagabunda cobrindo
Cala

Pois eu quero esses raminhos mesmo duros e com ferrugem
Quero esse espinho me furando o dedo agora
e também esta grinalda
aliás deixa ali a gota furada do dedo

porque já basta essa chuva que lambe minha paisagem
como se dela eu fosse namorado
Quero também esse torrão de terra molhada
ainda gritando um pedaço de chão.

Meu é o vaso partido agora
porque nele larguei o vestígio do quintal
pédeabacate pédemanga samambaia
a samambaia

vem comigo e não arredo o pé
pédemanga pédeabacate pede cuidado
ainda é cedinho
dá-me um beijinho

Fica com estes trastes inúteis
No quarto escuro na caixa engaveta
tampa de caixa fechado caixão
rosa silvestre

toma o beijo
agora
na rosa murcha
o beijinho toma.

06 julho 2010

Coisas estranhas

Parecia noite - e era.

Ele não olhou nos próprios olhos enquanto se barbeava.
Concentrou-se na espuma que caía devagar no peito como uma lamúria.
Mas tinha pressa: já era mais de uma da manhã.

Banho tomado, pele cuidada, roupa vestida e taxi à porta.
Pediu para fumar, o que o taxista negou. Tudo bem, dez minutos apenas.
Mas não esperou, desceu na metade do caminho e fumou três cigarros.
Na quadra seguinte, chamou outro táxi. E derrubou a cerveja no colo:
Foi-se embora o cheiro de banho.

Era noite, mas pouco importava. Alguns bares depois, na balada,
estava no fumódromo parado olhando a janela vizinha:
Cerrada, mas com uma luz de penumbra fazendo lua como se estivesse
na praia - daquelas luas meigas, aconchegantes e propícias a coisas de afeto.
Apagou o cigarro e voltou para dentro. Melhor mudar o rumo da prosa.

Era manhã. De fato era.

Chegou em casa. E ainda bem que o cobertor era quente e sua janela nada dizia
a respeito de praias, nem lua ou tampouco coisas de afeto.
Dormiu.

03 julho 2010

Do Lume

Venha, faísca
Permito que faça cor neste céu escuro
Pode me besuntar
com estrelas alvas - de ouro até.

Rutile e espouque
Faça vendaval na calma cansada
Na morna temperança
de braços recolhidos.

Acorde meu jardim inteiro,
Faça os vagalumes trinarem -
E que as cigarras se levantem
debaixo das folhas molhadas.

Com o lampejo da vida que não deseja partir;
E se mostra, diminuta, cordata
Mas tão grande como este lume
Espalhando no breu a luz inédita.

Venha luz de fogo. E derreta da janela
a borrasca gelada:
Já retirei as nuvens escuras,
Portanto, venha e incedeie este céu

- Onde teu brilho, com louvor, em mim irá clarear.

30 junho 2010

Ao Mar

Não é inverno. O céu não está acinzentado;

Aliás, inverno é. E também roxas as nuvens estão - mas pouco importa.
Colori em invenções o mundo que desejei viver, embora ocres as janelas se cobriram.
É para isso que tenho suspiros alados
E também beijos perdidos e também braços enormes

Já que as ondas caiam longe daqui, fui para praias enormes
distantes, perdidas
Pois somente lá cabiam
minhas barcas de feltro, minhas esteiras de papel.

E alaudes e pequenos cofres de madeira puida
Dentro da caixinha um bilhete
uma rama esgarçada - Um véu, uma grinalda
Um dizer feito voz murmurada

De amores e de gestos
Sim, eis as pálpebras balançando, eis os olhares festejando
A aurora roxa.
E também a cesta onde, em miudo esgar teus olhos perdidos encontrei.

Aqui está meu pedaço de inverno
Aqui está a sibilância no retalho da minha colcha que agasalha
Sopé do vento - quebra-mar, cortina mansa.
Aqui está o alúde que não mais sabe teu nome.

A esteira na praia dorme volvida
Através do vento e erguida
Na fuligem esquecida do outono, da primavera.
No redemoinho do tempo

Aquele, este tempo
Onde dorme
Através dos séculos a miragem partida
De teu retrato nestes olhos que suspiram rente ao mar.

28 junho 2010

Chegar, Partir - Estar

Desvencilhar-se dos laços
Sobrepor-se as amarras,libertar-se
dos afetos e dos amores. Arrancar
a lembrança da memória.

Dar um grito. E gemer o adeus
É a mais dolorosa
das partidas. Como riscar na face com lâmina ardente
o nome de quem fica.

Gravar na carne a face não daquele que parte
Mas o ente que separado, exilado vive.
nos mundos apartados e nas existências
Nômades.

Que faremos de nossas instâncias repletas de caminhos
Eram verdes, eram de alfazemas e alfazemas lilases
Continhas risos.
Agora ecos.

Partir nada me interessa. Porque chegar, sem ti nada vale
Dobrem-se véus escuros. Recaiam grutas escuras em grinaldas
Cubram este rosto
Afaguem estes olhos

Chegar? Sozinho nada pode interessar
Se lá distante ficaram
Aqueles por quem
Até aqui caminhei.

26 junho 2010

O Inventário

Não era seu costume, mas por um desses repentes que ninguém poderia explicar,
ele saiu amealhando suas voltas. E o olhar recaiu sobre as mais estranhas cousas - aquelas que nenhum leiloeiro daria um tostão, que nehuma caixa bancária receberia.

Passos quietos para não rangerem os assoalhos antigos, tampouco interromper o ronronar do gato, sequer desviar o olhar imóvel do cão no chão vermelho da cozinha.

Lembrou-se do jogo de panelas ainda brilhantes. A questão não seria para quem doar. Mas donde vinham... Léguas, léguas murmurejaram. E as panelas trouxeram consigo outro bocado de lembranças; estava certo: não eram meras panelas. Havia o trinado da cozinha. E portanto, dos cheiros.

Num instante de rodopio, quando já se partia daquele cômodo, subiu a voz da vizinha querida. Eis que Tia Eda chega trazendo vatapá fumegante. Ah, tive que me sentar para escutar ainda um breve rescaldo de vozes partidas no embaraço do tempo...

E na mesa azul coberta na borrasca fiquei ali sentado. Ainda estou. Rangeram as cadeiras. Soou o apito da chaleira. Sim, eu tenho cebolinha verde, mas nada de salsinha. Deixa eu correr em casa que ainda tenho um pezinho. E lá saiu tia Eda
e quando voltou, trouxe também o bolo de fubá para sobremesa.

Apagaram-se os fogos dos fogão. Todo mundo já estava sentado na porta de casa. Era tardinha e me empresta tua agulha porque a minha está meio torta. Tá bom, me passa o novelo azul-celeste.

E assim a noite se fechou com seus sons quando todos se deitaram para amanhecendo, o café vinha me acordar.

Zonzo, zonzo e patético, eis-me ali diante das mesmas panelas, aquela mesa azul de tampo coberto numa toalha engomada. Mas e o ar... Nunca... nunca mais vim um vento assim tão transúcido. Que não dava prá ver nem mesmo o opaco do opaco reverso duma paisagem.

Eis que ele parou o inventário: Guardou as louças que restaram. Alisou a sopeira que tinha no lábio um lábio trincado.

Não sabe se fechou os olhos procurando lembranças. Não soube de tardes mais quietas nem de louças ariadas. Não soube mais daquela mesa. Só restaram panelas ocas. No escuro do armário.

Bateu os dedos. Acendeu um cigarro. Foi dormir: Não tinha o que fazer com as panelas.
Nem com a cozinha, com seus cheiros. Pegou aquelas imagens, a voz de tia Eda e o retrato daquele tempo.

Não teve coragem de olhar para o lado. Porque sabia, que quando Tia Eda falava, sua mãe, logo respondia. Era melhor ficar quieto. Porque dos inventários das panelas, das cozinhas, da comida terna... Muito mais ternura ali continha...

18 junho 2010

Ne me Quitte Pas

Ne Me Quitte Pas
(Jacques Brel)


Ne me quitte pas
Il faut oublier
Tout peut s'oublier
Qui s'enfuit deja
Oublier le temps
Des malentendus
Et le temps perdu
A savoir comment
Oublier ces heures
Qui tuaient parfois
A coups de pourquoi
Le coeur du bonheure
Ne me quitte pas

Moi je t'offrirai
Des perles du pluie
Venues de pays
Ou il ne pleut pas
Je creuserai la terre
Jusqu'apres ma mort
Pour couvrir ton corps
D'or et de lumiere
Je ferai un domaine
Ou l'amour sera roi
Ou l'amour sera loi
Ou tu seras reine
Ne me quitte pas

Ne me quitte pas
Je t'inventerai
Des mots insensés
Que tu comprendras
Je te parlerai
De ces amants là
Qui ont vu deux fois
Leurs coeurs s'embraser
Je te racont'rai
L'histoire de ce roi
Mort de n'avoir pas
Pu te rencontrer
Ne me quitte pas

On a vu souvent
Rejaillir le feu
De l'ancien volcan
Qu'on croyait trop vieux
Il est paraît-il
Des terres brûlées
Donnant plus de blé
Qu'un meilleur avril
Et quand vient le soir
Pour qu'un ciel flamboie
Le rouge et le noir
Ne s'épousent-ils pas
Ne me quitte pas

Ne me quitte pas
Je ne veux plus pleurer
Je ne veux plus parler
Je me cacherai là
A te regarder
Danser et sourire
Et à t'écouter
Chanter et puis rire
Laisse-moi devenir
L'ombre de ton ombre
L'ombre de ta main
L'ombre de ton chien
Ne me quitte pas

31 maio 2010

Vem deitar comigo no sereno

Junto a estas folhas novas
cobertas de nervuras brilhantes:
tresloucadas e partidas,
Desgrenhados cabelos
Em mãos atônitas

Em cujas bocas anunciam vendavais
De dizeres de partidas
De acenos calados
que sequer se despedem -
Interrompido adeus

No rosto raptado.
Onde os olhos foram parar?
E por não saber, esta é minha cama
no frio da mata
na solidão gélida de ossos nus - sem braços.

Onde encontro tua própria roupa?
Manchada de sangue - Teu vestido de florzinha
duma primavera nunca mais vista.
Esta é minha quietude então
que balança, que balança no precipício azulado

Navego sem medo, vendo os olhos
Tenho guizos esquecidos pendurados nos cabelos
E ardem fios ligados na cabeça
Na cabeça pendem gritos gemendo um assombro.

Madrugada. Madrugada tardia
Na ponte de aço
Na escuma de alta voltagem. Este é o encontro
Onde suspiro noite adentro
E donde acordo, exaurido: sem teus braços.

Ao sereno da manhãzinha.

26 maio 2010

17 maio 2010

The God of small things

As tundras no vale
Meu pequeno sobrinho agora dorme; amanhã ensaiará sons...
Novamente

Depois de vigílias errantes, de lágrimas escondidas,
Tudo está em paz.
Carrinho amarelo, lousa sem riscar.

Que haja de chover, que apareça um sol - lilás
Que minha cortina abrande o vento
E no festejo da manhã surja uma florzinha no canteiro do jardim.

Tudo se chama paz, pois meu pequeno, agora, dorme
e amanhã, colocá-lo-ei pendurado no meu pescoço
E sem que saiba meu nome, com ternura, minha fronte, tocará.

21 abril 2010

O Outeiro

Não é grande a noite
mesmo que em seu bojo
de escuridão, apavore. E

Faça tremer vidraças, balançar chaleiras dormentes na cozinha;
Não é nada rente ao espectro que tenho
guardado neste canto obscuro onde, entranhadas

Memórias vacilam de tempos antigos.
Minha mãe acabou de falar (urdiram eras)
Ah, quão pequenas são estas mãos para conter.

E despencam dos galhos promessas tortas
Acusam desleixos impróprios,
Falam de pecados anônimos.

Deixada a face na surdina, na esquina onde
perambulam vestígios de desejos
inertes.

Aqui estão os despojos e os ultrajes
De sibilâncias perdidas
como galhos amelos no outono.

Cuidarei da rega e das podas,
Cuidarei de repor as flores sobre a cova,
bem como de polir o retrateiro.

Esboce sorrisos,
longe, muito longe, promessas se fazem - Novamente
acreditarei cumpridas.

Choveu.
E além da terra molhada,
A cesta coberta de fuligem, sobre flores tortas, cairá.

20 abril 2010

Tardinha

(Para R.L.T.)

A janela está aberta
O mar invade o atelier, onde os dois trabalham.
Vez por outra é o vento quem aparece, reclamando atenção.

Ambos param seus afazeres:
O que pinta
E o que borda na asa amarela dum avião, as inicias de seus nomes;

A janela não contém mais a nave
e eis que ela,
esfuziante, irrompe aos ares triunfante.

02 abril 2010

O labirinto silencioso

Três da tarde.
Ou talvez fosse um pouco mais cedo, quem sabe madrugada.

Lembrou ter regado as plantas; deu uma volta pela casa, arrumou o porta-retrato,
corrigiu a cortina.

Fosse madrugada, sairia pelas ruas, encontraria beijos alucinados de amores convulsos. Mas o crepúsculo ainda não se anunciara.

Trocou os andrajos rotos por vestes tortas. Em escuros óculos escamoteou olhos vesgos. E construiu enorme muralha.

Parou na esquina com seus andrajos pobres e perfumados. Entrou no taxi, sumiu na fumaça da cidade poluída. passou pó na cara.

Tomou uma cerveja, passou para gim tônica. E no meio do caminho, deu uma lambida em qualquer dog cheirando a cão molhado - e nem chovia.

Voltou para casa, ajeitou a cortina. E dormiu cheirando a saliva de beijos prometidos e sussurados.

Três da tarde.

08 fevereiro 2010

Ausência

Flores
carrega
encharcadas de saudade -
opacas.

Nos dedos frouxos
um sopro
ensaia dizer
teu nome

Mas nada diz.
Calado,
pelo avesso
em silêncio some.

26 janeiro 2010

Partidas vãs

Poderia falar das criaturas que se foram;
Da doçura perdida - Amigos que não existem mais.

Mas falarei de coisas mais intangíveis - de sonhos e de sopros
E estes são mais (ou tão) semlehantes a.

Vi fenecerem queridas plantas cultivadas ao longo de anos,
Como retratos que ora, partidos, quebrados se dissiparam
no escuro da sala na penumbra.

Mesmo assim, triste música ecoa - Evola
Em desastres duma vida
De esperanças partidas

Como abraços vãos.
E se ainda te procuro, não é teu rosto
que no espelho imagino que me vê.

Coleciono,sim, dizeres enfumaçdaos
De bêbados
De putas e expatriados.

Meus amigos, ultimamente tem sido estes
Marginais, anômalos, desfamiliarizados
Buscantes

- Valham reis e rainhas de Creta.
Constantinopla ainda existe?
Santa Sofia

Dos caídos
Dos que sopram e acenam
E no aceno, querem dize - em segredo:

- Vem me buscar

18 novembro 2009

Ontem - Hoje - Agora

Desfibrila o peito
Arrebata
Deslumbra

É um eco
É um gesto parido
Num olhar

Estranho
De um toque que serpenteia
a pele verde

Opaca, translúcida
que beija
a escuma da onda

Na praia onde dorme,
Sonhos, esperanças
Desejos.

De corpos saciados
Bocas satisfeitas
Almas plenas.

12 novembro 2009

Jorge Prado e Elizabeth Bishop - Por Marta Góes

" (...) fez dez anos outro dia. É claro que em dez anos a dor que você guardava na primeira prateleira e pulava no seu peito toda manhã vai se acumulando numa prateleira mais alta, e depois numa mais alta ainda, e depois num canto que você não alcança todo dia. Mas você sabe que ela está lá, guardada para sempre, junto de muitas coisas que fazem parte de sua vida (...)"

[Góes, Marta in: " Um porto para Elizabeth Bishop". Ed Terceiro Nome]

Assisti esta peça com um grande e inesquecível amigo - Jorge Prado. Com certeza a pessoa mais generosa que conheci na vida. Ele me apresentou inúmeros mundos... Infelizmente, quando ele Partiu deste mundo, não tive a oportunidade dele, me despedir.

Sim, há muito de tristeza nisso... Mas este bem-querer prescinde das coisas lineares.
O que importa, e você deve saber, meu querido... O tanto que sempre te quis bem.

Saudade é um outro nome para o amor. Embora não saiba onde estejas, levo-te margaridas e hortênsias... Nossas flores de outrora.

07 novembro 2009

De uma vida a sós

Povoada de seres inventados:
Cheiros, gestos, acenos
O amante;

A fuligem do roçado
às seis da manhã
quando os pássaros levantam

E os regatos acordam.
Tu vens, ainda cercado de bruma
e estrelas corando os cabelos.

E quase roço teus dedos
com lábios fechantes
e olhos de sonho.

Chego tão perto que estremeço
acreditando que aquele frescor
era mesmo verdade.

14 outubro 2009

A Festa da Saudade - Da Falta

Foi num tempo interminável,
Num dos espaços que não se ousa contar -
E que só se apercebe depois de desfibrilados dias.

Já que as janelas não são abertas,
Quando as plantas vão murchando
em quase gritos súplices

E o lixo vai se acumulando em sacos negros,
a louça na cozinha, os copos rotos.
E dedos trôpogos ao cair da tarde. Lacrimantes

Então assim se desenha o retrato do que falta.
Não é um ente, nem um estado
É algo inominável

Que geme
Feito urro, feito forca
No silêncio da tarde beirando o crepúsculo - Que vira madrugada.

21 setembro 2009

Indo a feira

Agora que somos ricas, precisamos ir a feira.

Amiga... você não vai acreditar!!!
Tô bege, passada no carbono 12 (13, 14, 27)

Descobri uma feira que vende as melhores amoras do mundo.
Fica numa ruazinha atrás da Sacre Coeur.
E de lá, damos uma esticada pra comprar o melhor Beluga.

Eu grito !!!! Uma pechincha... Só quinze mil euros o quilo...

Atrás do Kremilin. Nada que nosso jatinho não resolva, afinal, Moscow só fica há horinhas de Paris.

Mas por favor, sejamos discretíssimas... nada de chamar a atenção!

Você vai na sua gabardine Prada. E eu no meu rabo-de-peixe Oscar de La Renta prata.

Desceremos em plena Praça Vermelha. Com uma bolsinha tamanho família para comprar... caviar. Ora bolas...

09 setembro 2009

Crave - Sarah Kane

Ele está a seguir-me…
Ele precisa de ter um segredo mas não consegue evitar contá-lo
O calor está a sair de mim.
O coração está a sair de mim
E contudo ela não consegue lembrar-se
Ela não consegue esquecer
Agarrando um punho de areia
O que me liga a ti é a culpa
Eu atravessei dois rios e chorei por um
Eu sou o monstro no final da corda
Feliz e livre

(Tradução: Paula Gramacho / www.iainfisher.com)

15 agosto 2009

Apresentação

Não tema. Respire ... dona
nenhuma ameaça - sequer brinco
de roleta-russa

isto em tua testa é um mero beijo
ardido. Por que quiseste beber
do sol o núcleo?

aquieta-te! calço-te meias geladas
e elétricas
e molhadas - num nome de amor.

não te atiro nas têmporas. perdão
minhas unhas crescidas
crescidas são para buliçar ouvidos, cavucar almas

então te agarro nos braços
minha criança trêmula
de vísceras caídas.

dorme porque anoitece
e te embalo com luvas cerzidas
no espanto do urro

vem neste peito e bebe
como gelado sumo teu leite ácido
que mesmo eu chamei de agonia.

se caires de meus braços, escorrega então pelo lado esquerdo da cama
junto da parede onde a umidade
pintou de cinza o azul da janela

dorme logo porque já me vou.
nao sou um anjo, sou qualquer coisa alada
Se quiser me chame de Aldo L. Aldo com H.

06 agosto 2009

Do espólio

Já amanhecia, relia jornais antigos: "Sarah Kane cai. Mas cai de pé".
Foleou passagens e Marie Cardinal transitava com suas "Palavras para Dizer"
Pavese em transe no "Ofício de Viver". Hervé Guibert e seu "Protocolo da Comapixão".

Mais do que frases ou meras paragens... A cortina vacilando com os camaradas no espelho da parede se imiscuindo num mesmo rosto, numa mesma alma - Tudo tão conhecido, pensou.

(...)

Houve um período de sonho, quase um Giverny. Imaginou certos campos e quase uma florada de ipês. Ah, mas ipês seriam demais para o pequeno quintal.
Algumas samambaias, então. Não. Talvez jabuticabeiras. Ah, delírio.
Conformou-se então com damas-da-noite: Seria perfeito para noites silentes. Mas também eram demais. A casa se desfez.

Virou-se e sobre a mesa, um vaso com margaridas já lhe estendia campos.
Alfazemas, rouxinóis, regatos.
Era melhor ir dormir.

(...)

Ele lamentava, mas entendia a "queda" de Mrs. Kane.

21 julho 2009

Górecki: do urro escaldante ao silêncio ameno

Diante de pungências avassaladoras, quando o Homem se comprime em seus embates; quando é posto frente a situações que lhe são extremas (sejam quais forem).

No instante em que ombros vergam, mãos reclinam e os olhos pairam incrédulos...

Então aí sim, a música de Górecki surge como uma espécie de lenitivo. Não apresenta
nenhuma saída ou tampouco redime... Mas tem uma força que toca e dialoga com espíritos exaustos. E, embora (e de certa foma) exponha cruamene tais dilaceramentos, ao mesmo tempo eleva este espírito para outra zona, outro patamar da existência.

E assim, ao retornar, não diria que se esteja mais forte ou mais capaz. Mas a sensação indubitável é que aqueles ombros vergados, aquelas mãos caídas e aqueles olhos apagados readquirem uma outra espécie de vigor... uma leve sensação de que, ainda qu se esteja imerso no caldeirão borbulhante, uma nota adentrou o espírito. E se não curou mazela alguma, ao menos, permitiu um alento no calor insuportável de dias tão desconexos.
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Henryk Górecki, Sinfonia #3 - Opus 36
London Sinfonietta
Regente: David Zinman
Soprano Dawn Upshaw
Selo: Elektra Nonesuch

No Youtube tem uns vídeos ... alguns bem mal apropriados. Mas a música é o que vale.

19 julho 2009

O Relâmpago em Nietzsche - No homem

"Mais alto que o homem,
Mais alto que o bicho;
Subo mais alto.
Se falo, ninguém me faz eco.
Demasiado perto de minha cabeça
Estão as nuvens:
Espero o primeiro relâmpago."
(N., "Primeiros Poemas")

Tolice falar de desamparo. Tolice falar de solidão. Seria coragem a palavra adequada?
Blá-blá-blá
Mas seria um equívoco, ao menos, não vislumbrar essa questão de peregrino, de senhor de si mesmo que se arvora além das conjecturas e do presumível?
Portanto, vejamo-nos assim, no silêncio dos próprios botões na penumbra da madrugada; quando os amigos não chamam, quando a tv desligada não exibe formosuras nem apelos.
E principalmente porque nada é crível para almas alheias.

Quando o livro dorme fechado, quando apenas o silêncio reverbera pelos cômodos da casa.
E então aquele que desfralda a razão sobe ao cume. Na névoa do desepero e da des-razão aguarda: Os sinos, o réquiem, o esquecimento - Holderlin na torre.

Caiam os raios. Venham os relâmpagos. Enfim.

15 julho 2009

A Janela

Oi querido, perdão por ter quebrado tua janela.
Na verdade, era só para atirar um pedrisco. Bem, falando francamente, era para ser apenas um bilhete, mas tinha tanta coisa nele, que virou um peso enorme: eu não sabia que as flores pesavam tanto!
Pelo prejuízo, por favor encaminhe-me a conta.
Ou, se achares melhor, da próxima vez, apenas conchas, por teu átrio, arremessarei.

06 julho 2009

Silence

"Sim, deve haver um perdão para mim. Se não, não serei qual será o meu fim...."

Ao partir ele disse que não teria uma outra vez. Então, meus olhos compungidos, ai meus olhos, varreram a sarjeta onde a poeira, quieta, repousava. Fechei o robe, abotoei a lapela.
Troquei Ney pela Maria Bethania. E que a gritaria se ouvisse no quinto subsolo, ora pois...

E terminei meu whisky que estava no copo. E depois o que estava na garrafa. E depois o que estava no copo de plástico na lixeira da área de serviço. E liguei o candelabro na cozinha (não costumo usar luz sem óculos esucos).

Sim, ele se foi. Mas não de todo. Ainda havia dele, em mim, lembranças. Na casa, nos cômodos e na jacuzzi ( a louca...rs). Não ousei, claro, abrir as cortinas.

Acendi um incenso e fiz um café com uma louca grtiando NEGUE. E do outro lado, mais louca gritava eu... Negue e me belisque... Porque ele esteve aqui sim. Veja este corpo saturado de beijos e de suspiros. Um corpo que amou. E que foi amado até as paredes cobrirem os olhos ensimesmadas.

Linda. Loira... Japonesa... Maquiada. E de bigudinho! ( e com o green card na bolsa)Fui dormir exausta. Na boca, o beijo alheio com notas de scoth, cachaça e jurupinga. E pecado.Sim, ele é casado e tem um filho. E meu nome é Beth. Beth Balança meu amor... uiva Cazuza.

Rezei, claro, porque sou cristã. E me apareceu um anjo de um metro e noventa. Gritei.... Não... Sim... Eleva-me... Vem Dante. Sou Virgilio e Beatrice. Sou a própria Comédia.

Uma louca agora gritando "Bate outra vez, com esperança no meu coração..." Nào tive dúvidas: chamei o bombeiro. Ao adentrar no recinto de meu lar, onde, entre livros, um gato e um cão dormiam, o senhor bombeiro solenemente disse: - pois não dona?!!Aturdida, respondi: Tem mais gelo?

11 junho 2009

A Oferenda

Bom Jesus dos Navegantes
Venha
Aqui está meu coração
Toma, Arrebata, Escolhe
Tenho entre os dedos
Dois raminhos de uma flor que dorme
Já é lá fora
Escute
A noite tamborila
Aqui está minha boca
Já chove
Tenho um sopro no escuro
Volte e me leve na tua canoa
Eu tremo
Aqui estão tuas ondas na barca que segue
O mundo passa
As heras se encolhem
Hirto te estendo numa salva
Estes lábios vazios
E o peito que também geme
Leva contigo feito prece remota do escuro
Apanha e guarda
Só isto é o que tenho
No breu as minhas flores se espatifam
Já é manhãzinha
Não sei se você veio
Mas como as flores sumiram
Creio que em segredo tu as levaste.