ladob.bento@gmail.com

26 junho 2010

O Inventário

Não era seu costume, mas por um desses repentes que ninguém poderia explicar,
ele saiu amealhando suas voltas. E o olhar recaiu sobre as mais estranhas cousas - aquelas que nenhum leiloeiro daria um tostão, que nehuma caixa bancária receberia.

Passos quietos para não rangerem os assoalhos antigos, tampouco interromper o ronronar do gato, sequer desviar o olhar imóvel do cão no chão vermelho da cozinha.

Lembrou-se do jogo de panelas ainda brilhantes. A questão não seria para quem doar. Mas donde vinham... Léguas, léguas murmurejaram. E as panelas trouxeram consigo outro bocado de lembranças; estava certo: não eram meras panelas. Havia o trinado da cozinha. E portanto, dos cheiros.

Num instante de rodopio, quando já se partia daquele cômodo, subiu a voz da vizinha querida. Eis que Tia Eda chega trazendo vatapá fumegante. Ah, tive que me sentar para escutar ainda um breve rescaldo de vozes partidas no embaraço do tempo...

E na mesa azul coberta na borrasca fiquei ali sentado. Ainda estou. Rangeram as cadeiras. Soou o apito da chaleira. Sim, eu tenho cebolinha verde, mas nada de salsinha. Deixa eu correr em casa que ainda tenho um pezinho. E lá saiu tia Eda
e quando voltou, trouxe também o bolo de fubá para sobremesa.

Apagaram-se os fogos dos fogão. Todo mundo já estava sentado na porta de casa. Era tardinha e me empresta tua agulha porque a minha está meio torta. Tá bom, me passa o novelo azul-celeste.

E assim a noite se fechou com seus sons quando todos se deitaram para amanhecendo, o café vinha me acordar.

Zonzo, zonzo e patético, eis-me ali diante das mesmas panelas, aquela mesa azul de tampo coberto numa toalha engomada. Mas e o ar... Nunca... nunca mais vim um vento assim tão transúcido. Que não dava prá ver nem mesmo o opaco do opaco reverso duma paisagem.

Eis que ele parou o inventário: Guardou as louças que restaram. Alisou a sopeira que tinha no lábio um lábio trincado.

Não sabe se fechou os olhos procurando lembranças. Não soube de tardes mais quietas nem de louças ariadas. Não soube mais daquela mesa. Só restaram panelas ocas. No escuro do armário.

Bateu os dedos. Acendeu um cigarro. Foi dormir: Não tinha o que fazer com as panelas.
Nem com a cozinha, com seus cheiros. Pegou aquelas imagens, a voz de tia Eda e o retrato daquele tempo.

Não teve coragem de olhar para o lado. Porque sabia, que quando Tia Eda falava, sua mãe, logo respondia. Era melhor ficar quieto. Porque dos inventários das panelas, das cozinhas, da comida terna... Muito mais ternura ali continha...

Nenhum comentário:

Postar um comentário